Decisão do ministro do STF autoriza Estados e municípios a determinar quando fecharão hospitais de custódia. Especialista alerta: na prática, isso suspende prazo para fim de instituições ilegais, que violam direitos e impõem prisão perpétua para “loucos”
Na última quarta-feira (19/6), o ministro do STF Flávio Dino concedeu uma liminar que adia mais uma vez o fechamento definitivo dos hospitais de custódia, ou manicômios judiciários, no Brasil. A medida surpreendeu especialistas da área, já que o encerramento das atividades dessas instituições, onde são “tratadas” as pessoas com transtornos mentais que cometeram delitos, está previsto desde a sanção da Lei da Reforma Psiquiátrica, a lei 10.216/2001, há 23 anos.
A decisão de Dino (que pode ser lida aqui) suspendeu em parte os efeitos da resolução nº 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dava até maio de 2024 para que Estados e municípios fechassem os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs). A pedido do governador Cláudio Castro, o magistrado avaliou que as autoridades é que devem decidir o “cronograma de interdição e fechamento” – efetivamente, isso significa deixá-los indefinidos, dizem críticos.
“Na prática, isso quebra a espinha dorsal da resolução. Em 23 anos, o Executivo não tomou iniciativa para fechar esses hospitais que são excrescências tanto no sistema penal quanto no sistema público de saúde. Essa decisão do Flávio Dino virou as costas a vários tratados e à legislação brasileira”, explica Leonardo Pinho, ex-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e ex-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
Assim como havia relatado o psiquiatra Paulo Amarante em coluna para este boletim ao afirmar que os manicômios judiciários “não cuidam nem ressocializam”, Pinho denuncia que múltiplas ilegalidades ocorrem nessas instituições. “A principal delas é a prisão perpétua, que não existe no Brasil. Uma pessoa presa por furto, que pegaria quatro anos de pena, acaba ficando ali vinte ou trinta com a justificativa do diagnóstico psiquiátrico. Outra são as instalações desses hospitais de custódia, que violam todos os tratados internacionais”, ele enumera.
Os governos alegam que não têm para onde encaminhar esses pacientes, mas o argumento é rejeitado pelo campo da reforma psiquiátrica: a própria lei determina que as instalações do Sistema Único de Saúde (SUS), como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), são adequadas para tratar todos os cidadãos. “Cuidado e tratamento devem ser feitos em equipamentos especializados, de base comunitária e não espaços de exclusão e violação de direitos”, diz o ex-presidente da Abrasme.
Acordos quebrados
Pinho, que acompanha de perto os processos de desinstitucionalização de usuários dos serviços de saúde mental, relata que a decisão de fechar os 32 últimos manicômios judiciários – onde estão internadas em torno de 4,6 mil pessoas – também vai na contramão de entendimentos entre os Poderes que haviam sido firmados nos últimos anos.
Em primeiro lugar, ele diz, a resolução havia sido construída a partir de contribuições de outros conselhos participativos – como o próprio CNDH – e da sociedade civil, “não saiu da cabeça dos integrantes do CNJ”. “Foi um movimento de cobrança para que se cumprisse a Lei 10.216/2001”, resume.
Além disso, ela respondia a um processo mais amplo: para cumprir com a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Damião Ximenes, em que um jovem de Sobral (CE) foi espancado e morto em uma clínica psiquiátrica, surgiu em 2023 a Política Antimanicomial do Poder Judiciário. A resolução foi desenhada exatamente para estabelecer suas diretrizes – um procedimento com que o país estava em dívida desde que foi julgado culpado pela Corte IDH, em 2006. Ao assinar a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, alguns anos depois, o Brasil se comprometeu mais uma vez com o cuidado em liberdade de todos os cidadãos.
Ainda no ano passado, o Governo Federal se envolveu no esforço de fechamento dos últimos HCTPs. “Eu estive na mesa que lançou o cumprimento dessa resolução. Estavam presentes o Ministério da Saúde e o Ministério dos Direitos Humanos, que se comprometeram a dar as condições para a desinstitucionalização”, lembra o ex-presidente da Abrasme.
Por isso, ele questiona: se há um ano e meio a resolução foi publicada, e há 23 anos a Lei da Reforma Psiquiátrica já está em vigor, porque Estados e municípios pedem para não ser determinado externamente um prazo para que transfiram o cuidado com esses últimos pacientes para outros equipamentos?
“O Estado brasileiro assinou protocolos para cumprir com a resolução do CNJ. A decisão do Flávio Dino simplesmente rasga essa situação”, pondera Pinho.
Manicomializados por furto e aborto
O cenário apresentado, de condenações menores se desdobrando em décadas no manicômio judiciário, não é meramente hipotético. Segundo um levantamento da UnB corroborado por recentes dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), um terço das pessoas internadas nesses hospitais está condenada por crimes como roubo e furto, cujas penas não chegam a dez anos.
Os números da Senappen ainda indicam que 39% da população dos manicômios judiciários é composta por presos provisórios. Há neles até mesmo pessoas condenadas por aborto ou crimes como uso de documentos falsos e falsificação de selos.
“As pessoas não deveriam nem estar presas nesses hospitais de custódia. Em tese, eles são locais de tratamento. Mas elas ficam presas e, pior, não ficam vinculadas ao cumprimento da pena daquele tipo criminal sobre o qual ela foi julgada”, lamenta Pinho.
Após o fechamento, há dois anos, da Colônia Juliano Moreira, o derradeiro hospício “comum” em funcionamento, a existência dos HCTPs é um dos últimos redutos do modelo manicomial no país. No Brasil, o tratamento em saúde mental baseado na internação forçada resultou em centenas de milhares de vítimas, como nas célebres colônias Juqueri e de Barbacena, fechadas em consequência da reforma psiquiátrica.
Na avaliação do ex-presidente do CNDH, já houve tempo para construir novos CAPS, Serviços de Residência Terapêuticas (SRTs) e Centros de Convivência, além de hospitais gerais, que tenham capacidade de atender aos 4,6 mil presos institucionalizados nos manicômios judiciários. Por isso, não se justificaria uma liminar que entrega aos Estados e municípios o direito de determinar o próprio prazo para cumprirem com uma legislação de décadas atrás.
A liminar de Dino ainda pode ser revista quando o plenário do Supremo Tribunal Federal avaliar a questão, mas não traz um bom sinal. “É uma decisão que, mais uma vez, atrapalha o cumprimento da lei no Brasil”, conclui Leonardo Pinho.
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