Todos os anos, mais de 100 meninas e meninos indígenas sofrem algum tipo de violência sexual no Mato Grosso do Sul
No dia 09 de agosto de 2021, Dia Internacional dos Povos Indígenas, Alice Rocha, conselheira tutelar e voluntária atuante nas causas indígenas desde 2005, seguia mais um dia de trabalho em Dourados, a segunda maior cidade sul-mato-grossense. Na ocasião, ela estava dentro do território indígena, na aldeia Bororó, procurando uma menina de 10 anos que estava casada com um homem adulto, quando recebeu a denúncia de que uma criança havia sido encontrada sem vida numa pedreira nas proximidades. Ao chegar no local, ela presenciou a mãe, Vanilda da Silva, uma indígena guarani-kaiowá, velando um pequeno corpo nu, o de sua filha, e descreve a cena como uma das mais horríveis já vistas em sua caminhada.
A existência da indígena guarani-kaiowá Raissa da Silva Cabreira, 11 anos, foi interrompida brutalmente e faz parte da longa lista de vítimas de violência sexual contra crianças e adolescentes indígenas no Mato Grosso do Sul (MS). O estupro coletivo seguido do arremessamento da garota, ainda consciente, de um penhasco envolveu cinco participantes, todos indígenas: 3 adolescentes e 2 adultos, incluindo o tio, morto na prisão, que abusava sexualmente da menina desde que ela tinha 6 anos.
Segundo Alice, o que ocorreu com Raíssa não é um fato isolado; de lá para cá, vários casos, com óbitos, dentro das comunidades indígenas, chegaram ao conselho tutelar. Em 2023, o órgão atendeu mais de 20 situações envolvendo meninas e adolescentes de 6 a 14 anos vítimas de violência sexual dentro das aldeias; em 3, as vítimas faleceram. Os acusados, na maioria das vezes, são familiares e/ou pessoas próximas às vítimas. As denúncias partem da própria comunidade, por mulheres que, ao longo do tempo e com o fortalecimento do feminino indígena, se encorajam para abordar o assunto ainda velado em algumas comunidades.
A fragilidade das políticas públicas de proteção das crianças, adolescentes e toda a comunidade indígena no MS – o terceiro maior percentual populacional do país – possibilita inúmeros tipos de violências e coloca o estado como o pior violador de direitos humanos contra povos originários no mundo, relatados à Organização das Nações Unidas (ONU). Os números levantados pelo Instituto Socioambiental (ISA) evidenciam uma situação alarmante: 39% dos assassinatos de indígenas no Brasil entre 2003 e 2019 ocorreram no estado, assim como 64% dos suicídios de indígenas registrados entre 2000 e 2019. O documentário Guarani e Kaiowá: pelo Direito de Viver no Tekoha, da ONU, lança luz sobre os 700 suicídios de indígenas no Mato Grosso do Sul entre 2001 e 2016.
No cenário nacional, a grave insegurança nos territórios no que tange a violência sexual contra meninas e mulheres, findou as vidas de Ana Beatriz, 5 anos (2020), do povo sateré-mawé, no Amazonas (AM); Daiane Griá, 14 anos (2021), etnia kaingang, no Rio Grande do Sul (RS); e, em dezembro de 2023, uma menina de 11 anos sobreviveu a um estupro coletivo após ser embriagada na Casa de Saúde Indígena Yanomami (Casai-Y), em Boa Vista, Roraima (RR). De acordo com a relatora especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, 1 em cada 3 mulheres indígenas já sofreu violência sexual ao longo da vida.
No compilado publicado pela organização Think Eva, nas Terras Indígenas (TIs) yanomami, onde uma crise humanitária foi causada pelo garimpo ilegal, “ao menos trinta jovens estão grávidas de garimpeiros que abusavam sexualmente delas em troca de comida e alimentos. Além disso, mulheres e meninas indígenas são um dos grupos mais vulneráveis ao tráfico humano, fisgadas principalmente para a prostituição: na região da tríplice fronteira, entre Colômbia, Peru e Brasil, no Amazonas, 80% das mulheres traficadas são exploradas sexualmente”.
De teor complexo, a violência sexual contra crianças e adolescentes indígenas não possui registros oficiais em órgãos como o Conselho Tutelar de Dourados, Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul (DPGEMS), Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul (MPMS) e Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Em um levantamento inédito apresentado ao #Colabora, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (SEJUSP/MS) contabilizou – sem especificar etnia, gênero, localidades e mortalidade – que de 2010 até 2024, na faixa etária de 0 a 11 anos, 395 crianças indígenas foram estupradas no estado. No mesmo período, na idade de 12 a 17 anos, 363 adolescentes indígenas sofreram violência sexual. Sendo a média anual mais alta em 2023: 50 crianças e 60 adolescentes indígenas. Quem trabalha com essa realidade cogita que a condição pode ser ainda pior devido à subnotificação.
A conselheira tutelar diz que é desafiador, principalmente para mulheres e meninas – as mais afetadas nos aspectos da violência sexual, sucede com meninos igualmente, mas em uma proporção menor -, manter-se viva na Reserva Indígena de Dourados, a Terra Indígena (TI) mais populosa do MS. Aproximadamente 20 mil indígenas das etnias guarani, kaiowá e terena vivem nas aldeias Jaguapiru e Bororó, em uma área de 3,5 mil hectares. “A violência sexual ocorre atrelada a outros tipos de violência, como a física e a psicológica. Não apenas a criança está em risco, e sim toda a família. Para sair de um ciclo de violação de direitos que atravessa muitas questões – socioeconômicas, poder político dentro da comunidade e de parentela – essas vítimas atravessam sérias ocorrências”, descreve Alice.
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